Somos pobres, fomos sempre pobres e assim continuaremos, com orgulho, olhos abertos e a cara lavada. A isto chama-se consciência de classe; coisa que se ganha por hereditariedade, quando se é pobre há várias gerações. Mais de cinco, pelo menos.
Somos pobres, mas não somos burros, não andámos em colégios de padres, nunca entrámos em igrejas, tentámos sempre desmascarar as mentiras que nos impingiam na escola e absorvemos apenas aquilo que nos parecia certo.
Se alguns de nós foram à Universidade, foi apenas para provar que não somos burros, que aquilo se faz sem grande esforço, mesmo trabalhando ao mesmo tempo e que não é isso que faz de nós doutores. É claro que à custa disso, arranjámos um trabalheco melhor, no escritório e não no armazém, ou na rua, longe do chão de fábrica, dos campos e das limpezas.
Somos pobres, mas não somos burros. Por isso, quando nos dizem que se passa fome em Portugal e que as latas de atum foram metidas em gaiolas com alarme para não as roubarmos, rimos muito. Faz parte da nossa condição, rir muito. É por isso que se vêem muitas rugas junto aos olhos. Um pobre, conhece-se pela cara, não pelo cheiro, porque há bem mais badalhocos ricos do que pobres.
Como alguns de nós são empregados de escritório, conhecemos perfeitamente os truques sujos que outros empregados de escritório usam para vender tralhas e criar necessidade de ter coisas corriqueiras ou inúteis. Há quem lhes chame marketing ou neuromarketing, mas não passa de um truque inventado por um empregado de escritório aborrecido. Como funciona? É simples: arma-se uma tramóia com um ou vários merceeiros (aqui em Portugal são sempre os mesmos) que se disponibilizam para meter o atum nas tais gaiolas, durante uns dias, com o preço de 400$00. Tiram-se umas fotos que se mandam para um jornaleco qualquer que cria um exclusivo com isso, dizendo que se passa fome em Portugal e que os pobres andam a roubar. Na verdade, não é um jornaleco qualquer, é o do Balsemão, o Expresso [pt], o jornal dos ricos e dos pacóvios. A coisa passa depois para a televisão do mesmo e alastra-se por todo o lado criando um alarme generalizado.
Ao mesmo tempo, os tais empregados de escritório mandam libertar o atum das gaiolas e até dizem aos merceeiros para baixarem o preço de 400$00 para 200$00. Ora, o desgraçado que tinha visto na TV o atum engaiolado e se depara com ele ali à solta e a metade do preço, apressa-se a açambarcá-lo e a encher a sacola de latitas. Com sorte, até se disponibiliza para trabalhar para o merceeiro pagando a despesa numa daquelas maquinetas automáticas. O merceeiro, enche os bolsos, o empregado de escritório ganha um prémiozeco e o desgraçado enche o papo de atum de lata.
Nós, os pobres, fazemos o que sempre fizémos; se a posta de peixe é cara, comemos a cabeça e os rabos e fazemos disso um pitéu. Se o bife de boi é caro, comemos o rabo. Se a costeleta de porco é cara, comemos o chispe. A fruta pequena e feia e a hortaliça da época. Somos pobres velhos, de linhagem. Não enchemos as algibeiras aos ricos. Se são pobres novos, de uma ou duas gerações, é natural que não tenham consciência de classe, que encham os bolsos aos ricos, que trabalhem de borla e que tenham hábitos de rico, sendo muitas vezes, ainda mais pobres do que nós.
O que o Expresso e outros jornalecos fazem é mercantilização da mentira, como diz este camarada do Publico [es]. Faz-nos falta um jornal operário de grande tiragem, feito por pobres, para pobres, como em tempos o foi A Batalha [pt]. Esta coisa dos preços altos, da especulação e da carestia de vida não é nova. Veja-se o artigo no topo do lado direito desta edição que ali partilho de 25 de Outubro de 1919. Está lá tudo. É sempre o mesmo há mais de cem anos. Somos pobres há mais de cem anos. Burros nunca fomos e nunca seremos.